Ao longo da história da
humanidade, é de certo modo regular a observação de uma classe de
acontecimentos de grande vulto, capazes de causar grandes impactos na ordem
social, econômica e política preestabelecida, bem como de alterar o curso
natural das muitas vivências no seio das mais variadas sociedades.
Tais eventos podem ser
desencadeados pelos mais variados fatores, todavia é lugar comum considerar que
a partir de meados do século XVI, com a ascensão de um novo sistema de produção
e de organização da vida social, a saber, o capitalismo, eles assumem um
caráter explosivo cada vez mais impactante, ainda mais pelo fato de que tal
sistema simplesmente subjuga de maneira implacável todas as dimensões inerentes
à comunidade global, interligando tais dimensões de maneira terrivelmente
assustadoras quando por algum motivo as suas estruturas normais de
funcionamento são abaladas.
Neste exato momento estamos
presenciando uma conjuntura de crise econômica global representativa da
convergência de uma gama de fatores subjacentes ao processo de extraordinária
acumulação de capital observada principalmente ao longo dos séculos XIX e XX,
aonde um pequeno grupo de nações assumiram o leme do direcionamento político e
econômico global, através de mecanismos de dominação imperialista
historicamente constituídos.
Obviamente que os Estados Unidos
são o centro de gravidade desse processo de expansão irrefreável do
capitalismo, e atingiram esse status, dentre outros motivos, a partir do enorme
poderio militar, político e econômico que adquiriram, principalmente com os
resultados das duas Grandes Guerras do século XX.
Mas é necessário salientar que o
atual momento de crise, é resultado não somente das ações desencadeadas pelas
estratégias imperialistas de um único país, mas sim do conjunto do jogo
representativo da correlação de forças da configuração geopolítica mundial, e a
história mostra que nesse cenário, alguns atores emergem como protagonistas na
condução dos fatos (EUA, Japão, Alemanha, China, etc), enquanto que outros
lutam para firmar as bases de sua representatividade no jogo global, embora
enormemente dificultados pela falta dos recursos políticos e econômicos
acumulados pelo primeiro conjunto de países citados anteriormente, e aqui
poderíamos citar tanto as nações ditas emergentes
(Brasil, Índia, Rússia) quanto as zonas periféricas extremamente carentes, como
a maioria das nações da África, bem como boa parcela das latino-americanas e
asiáticas.
Pois bem, isto posto, podemos nos
debruçar sobre os motivos elencados por David Harvey (em “o Enigma do Capital”,
cap. 01) e Robert Brenner (“A caminho do abismo: a crise na economia dos EUA”,
artigo publicado em junho de 2002) no que tange à deflagração de uma crise sem
precedentes nas profundas estruturas do sistema capitalista, suficiente para
alterar substancialmente a dinâmica das relações de poder no panorama da ordem
geopolítica mundial e abalar seriamente as condições de vida da comunidade
planetária.
Antes de mais nada, é preciso
sublinhar que ambos os autores desenvolvem sua argumentação a partir de uma
discussão detalhada sobre os mecanismos de desregulamentação financeira que se
fizeram mostrar de maneira notável ao longo das últimas décadas,
constituindo-se num novo paradigma da acumulação, aonde os processos de
financeirização, sobrevalorização de ativos, securitização de dívidas, enfim,
uma gama de arranjos institucionais circunscritos à acumulação de capital
fictício, acabaram por suplantar os meios comuns de crescimento via incrementos
produtivos na chamada economia real.
Mas a crise
deflagrada em 2007, fruto do estouro da chamada bolha imobiliária norte-americana (e também britânica, em menor
proporção) é resultado, segundo Brenner e Harvey, de um processo historicamente
constituído de uma sucessão de fatos que se correlacionam no sentido do
estabelecimento de posições hegemônicas por parte tanto de nações, quanto de
eminentes figuras do alto escalão do mundo corporativo empresarial global.
Tais considerações
remontam aos anos dourados do
capitalismo (1945 até fins da década de 60), capitaneados pelas políticas do
chamado estado de bem estar social
keynesiano, passando pela ruptura da estabilidade do período com a crise
deflagrada em 1973 com a arrancada inflacionária dos preços da principal matriz
energética mundial (não obstante o fato de que alguns anos antes do embargo do
petróleo já haviam indícios de uma possível estagnação da prosperidade
capitalista).
É justamente nesse
momento que começam a tomar contornos mais nítidos o desenho de forças mundial
que irá criar as condições necessárias a fomentar um gradual processo de crise.
O que se tem na
década de 70, a partir da crise do petróleo, é um excesso de capacidade
produtiva em desuso, pelo fato de que as grandes potencias, dada a intensa
concorrência internacional (em função da entrada de produtores com baixo custo
do Japão e Europa Ocidental) assumiram a posição de financiar e refinanciar as
mesmas linhas de produção já em movimento, em vez de canalizar os recursos para
linhas alternativas, o que acabou por causar insuficiência de demanda efetiva,
e consequentemente uma alarmante tendência à queda da taxa de lucro.
Para solucionar o
problema, nações como os Estados Unidos e a Inglaterra, adotaram políticas
neoliberais, sob a tutela de chefes de Estado irredutíveis em suas convicções
conservadoras, como Ronald Reagan e Margaret Tatcher, para frear a queda da
taxa de lucro. Na década de 80, isso se materializou em medidas de austeridade
e, principalmente de elevação do desemprego, com a desculpa de combate a
inflação, para tão somente pressionar a oferta de trabalhadores pra cima,
reduzindo automaticamente os salários.
Outra medida de
impacto foram alguns acordos ditos bilaterais
no campo econômico, mas que na prática minavam o poder comercial de algumas
nações em proveito de outras, como o Plaza
Accord de 1985, reduzindo substanciamente o valor do dólar norte-americano
face ao yen japonês e ao marco alemão, deteriorando enormemente os termos das
trocas comerciais desses países em favor da América, ainda mais pelo fato de
que aliado a isso estava uma política de constante arrocho salarial, o que
beneficiava ainda mais o setor manufatureiro dos Estados Unidos.
Todavia tal
expediente precisou ser revertido no início da década de 90, uma vez que o
dramático processo de estagnação e recessão das economias japonesa e alemã,
acabaram por representar uma séria ameaça à estabilidade da economia mundial, e
a percepção norte-americana desse fato, ainda mais porque o Japão era seu
principal credor, fez com que o Governo dos EUA acordasse com as duas nações a
subida do dólar.
Esse fato, para
Brenner:
“(...) Constituiu um ponto de
viragem na evolução da economia mundial. Inverteu as tendências econômicas da
década precedente e , de forma decisiva, preparou o caminho para os principais
desenvolvimentos do quinquênio seguinte: declínio da rentabilidade americana,
subida histórica no preço dos títulos, boom
da economia provocado pela atividade bolsista – e o crash e a recessão que se seguiram.” (BRENNER, 2002, p. 05)
Ocorreu que com a
valorização do dólar via inundação fiduciária do mercado norte-americano pelos
títulos asiáticos, os investidores do mercado financeiro viram aí uma excelente
oportunidade de ação, haja visto que para assegurar a estabilidade na esteira
da crise financeira mexicana, a Reserva Federal baixara os juros de curto
prazo.
Vale aqui ressaltar
que esse processo de valorização do dólar veio pôr termo à guinada de
recuperação do setor manufatureiro norte-americano, acarretando consequente
declínio de sua rentabilidade, reduzindo desta forma o potencial de absorção
das exportações mundiais pelos Estados Unidos, tidos como “mercado de último
recurso”.
A partir da
elevação das expectativas do setor financeiro norte-americano, via elevação do
crédito em grandes proporções, ocorrerá ao longo da década de 90 uma sucessão
de fatos emblemáticos da nova tendência a ser assimilada pelo capitalismo, a
saber, a de contínua financeirização. Esta nova tendência tinha o importante
apoio das autoridades monetárias, como o presidente do Fed à época, Alan
Greespan, que incentivava o constante endividamento das empresas
norte-americanas via emissão de títulos que se valorizavam rapidamente, por
considerar que tal medida era de importância primordial no processo de
recuperação do crescimento. E neste aspecto, é de notável importância destacar
o que houve com a alavancagem inicial e vertiginosa queda posterior das
chamadas firmas ponto.com. Nesse contexto,
tais firmas eram vistas como potenciais geradoras de enormes fortunas (e de
fato o foram, embora baseadas em capital fictício!) pelo contínuo aumento do
desenvolvimento da chamada tecnologia da informação e sua consequente demanda.
Ocorre que tais
firmas eram nada mais nada menos que retratos sofisticados do que de fato
ocorria por trás da aura exuberante de liquidez que se desenhava na economia
norte-americana: empresas com rentabilidade real quase nula, mascaradas por uma
sobrevalorização artificial de seus papéis, baseadas na confiança irracional
por parte dos agentes envolvidos em sua operacionalidade.
Por intermédio de
mecanismos fraudulentos de contabilidade, tais firmas proporcionavam
remunerações absurdamente elevadas a seus correspondentes operadores no mercado
financeiro, bem como aos bancos e intermediários que auxiliavam neste processo
ilusório de alavancagem.
“Crises associadas a problemas nos mercados imobiliários tendem a ser mais duradouras do que as crises curtas e agudas que, às vezes, abalamos mercados de ações e os bancos diretamente. ”
Quando, no início
da década de 2000 a confiança no valor desses papéis enfim se deteriorou, a bolha estourou, gerando enormes perdas
no conjunto das firmas que se relacionavam de forma interdependente,
circunscritas no entorno das ponto.com.
É preciso ter em
mente esse pano de fundo histórico para compreender a crise de dívida recente
que assola os mercados norte-americanos e europeus, pois com o final do estouro
da bolha das firmas ponto.com,
paulatinamente foi se materializando os mecanismos de geração de uma nova
bolha, a saber, a do setor imobiliário, e este processo acabou por assumir
contornos ainda mais dramáticos que o anterior.
Nesse aspecto,
David Harvey escalerece que:
“Crises associadas a problemas
nos mercados imobiliários tendem a ser mais duradouras do que as crises curtas e
agudas que, às vezes, abalamos mercados de ações e os
bancos diretamente. Isso porque, como veremos, os investimentos no espaço
construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno
demorado: quando o excesso de investimento é enfim revelado (como aconteceu
recentemente em Dubai), o caos financeiro que leva muitos anos a ser produzido
leva muitos anos para se desfazer.” (HARVEY, p. 14)
Harvey também faz
um interessante paralelo histórico entre a recente crise deflagrada pelo
estouro da bolha imobiliária norte-americana com outros momentos correlatos
como:
1.
Crise
originada no setor imobiliário norte-americano na primavera de 1973, que acabou
por decretar a falência técnica de
Nova York.
2.
Boom
japonês da década de 80 que acabou num colapso do mercado de ações e preço da
terra.
3.
Crise
do sistema bancário sueco, o qual acabou tendo de ser nacionalizado em 1992,
também provocada por excesso nos mercados imobiliários nórdicos.
4.
Colapso
no Leste e Sudeste asiático de 1997 a 1998 em função de um desenvolvimento
urbano excessivo, ocasionado em função de um influxo de capital especulativo
estrangeiro.
A questão da crise
atual é que ela é de maior alcance do que todas essas outras. Deflagrada em
2007, ela se configura como um assombroso processo de expansão das dívidas das
famílias, sendo tais dívidas materializadas em títulos hipotecários que eram
repassados aos bancos em troca de empréstimos, tendo como lastro o valor do
próprio imóvel. Obviamente que esse processo se alastrava em cadeia, com os
bancos e demais instituições securitizadoras em posse de papéis tóxicos dando continuidade num irrefreável movimento de
arrefecimento da oferta de crédito e consequente recessão. Na verdade não
queremos aqui fazer um detalhamento minucioso da dinâmica da crise, e sim
salientar, com o auxílio da obra dos dois pensadores já citados, que ela
constitui um ponto crítico na configuração do sistema capitalista de produção,
na medida em que coloca sub judice os
parâmetros definidores da lógica neoliberal, ideologia de sustentação de tal
sistema implantada a contragosto mundial desde meados da década de 70.
“Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido destruídos"
Fato é que, a
sociedade se vê obrigada a socializar
as perdas dos grandes bancos e das grandes corporações diretamente responsáveis
pelo frenesi especulativo que ocasionou o crescimento e posterior estouro da
bolha imobiliária. Milhões de pessoas se veem despejadas de suas casas,
endividadas, desempregadas. Países com grande dependência do comércio mundial
veem suas possibilidades de ganho drasticamente reduzidas em função da flagrante
redução da liquidez internacional. Firmas do setor produtivo têm de conviver
com uma asfixiante redução dos canais de crédito, vitais a seus projetos de
investimento e expansão. E ainda assim, os Governos se colocam a serviço
daquelas megacorporações, oferecendo pacotes
de salvação a firmas grandes demais
para falir.
Os números da
tragédia chegam a cifras realmente assombrosas. Harvey pontua por exemplo, que:
“Na primavera de 2009, o Fundo
Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em valores
de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços
no mundo) haviam sido destruídos. A Federal Reserve estimou em 11 trilhões de
dólares a perda de valores de ativos das famílias dos EUA apenas em 2008.
Naquele período, o Banco Mundial previa o primeiro ano de crescimento negativo
da economia mundial desde 1945.” (HARVEY, p. 13)
Obviamente que uma
crise dessa magnitude repercute no mundo todo, dado o caráter extremamente
globalizado da presente conjuntura internacional.
Até mesmo países
como a China, tida como o grande motor do crescimento econômico mundial da
primeira metade da década inicial dos anos 2000, sentiu o efeito da baixa
procura mundial pelos seus produtos e experimentou certa tensão social disso
decorrente. Se falarmos dos países na extrema periferia do mundo, ou ainda
daqueles significativamente dependentes dos canais de endividamento
relacionados à crise (tais como Grécia, Espanha e Irlanda) o quadro é ainda
mais perturbador.
Portanto o que está
em jogo é a legitimidade de estruturas de poder estabelecidas ao longo das
últimas décadas, que acabaram por apresentar falhas fundamentais em seus
mecanismos de auto reforçamento, e que por isso levaram as consequências de
atitudes gananciosas a serem partilhadas por milhões de pessoas na maioria das
vezes totalmente alheias à magnitude da importância histórica dos
acontecimentos.
Mas para aquele
estrato esclarecido da sociedade, afigura-se de vital importância o assomar de
forças no sentido de mobilização em prol de apresentação de novas alternativas
políticas de condução dos povos aos novos rumos a serem tomados, rumos que
possibilitem a contemplação da dimensão humana e ambiental em primeiro lugar.
1-Bolsista de Iniciação Científica e discente do Curso de Graduação em Economia da Universidade Federal do Pará.