segunda-feira, 12 de agosto de 2013

CAPITALISMO SUB JUDICE: Uma discussão das crises recentes a partir da leitura de Harvey e Brenner.

[1] Pedro Henrique

Ao longo da história da humanidade, é de certo modo regular a observação de uma classe de acontecimentos de grande vulto, capazes de causar grandes impactos na ordem social, econômica e política preestabelecida, bem como de alterar o curso natural das muitas vivências no seio das mais variadas sociedades.
Tais eventos podem ser desencadeados pelos mais variados fatores, todavia é lugar comum considerar que a partir de meados do século XVI, com a ascensão de um novo sistema de produção e de organização da vida social, a saber, o capitalismo, eles assumem um caráter explosivo cada vez mais impactante, ainda mais pelo fato de que tal sistema simplesmente subjuga de maneira implacável todas as dimensões inerentes à comunidade global, interligando tais dimensões de maneira terrivelmente assustadoras quando por algum motivo as suas estruturas normais de funcionamento são abaladas.
Neste exato momento estamos presenciando uma conjuntura de crise econômica global representativa da convergência de uma gama de fatores subjacentes ao processo de extraordinária acumulação de capital observada principalmente ao longo dos séculos XIX e XX, aonde um pequeno grupo de nações assumiram o leme do direcionamento político e econômico global, através de mecanismos de dominação imperialista historicamente constituídos.
Obviamente que os Estados Unidos são o centro de gravidade desse processo de expansão irrefreável do capitalismo, e atingiram esse status, dentre outros motivos, a partir do enorme poderio militar, político e econômico que adquiriram, principalmente com os resultados das duas Grandes Guerras do século XX.
Mas é necessário salientar que o atual momento de crise, é resultado não somente das ações desencadeadas pelas estratégias imperialistas de um único país, mas sim do conjunto do jogo representativo da correlação de forças da configuração geopolítica mundial, e a história mostra que nesse cenário, alguns atores emergem como protagonistas na condução dos fatos (EUA, Japão, Alemanha, China, etc), enquanto que outros lutam para firmar as bases de sua representatividade no jogo global, embora enormemente dificultados pela falta dos recursos políticos e econômicos acumulados pelo primeiro conjunto de países citados anteriormente, e aqui poderíamos citar tanto as nações ditas emergentes (Brasil, Índia, Rússia) quanto as zonas periféricas extremamente carentes, como a maioria das nações da África, bem como boa parcela das latino-americanas e asiáticas.
Pois bem, isto posto, podemos nos debruçar sobre os motivos elencados por David Harvey (em “o Enigma do Capital”, cap. 01) e Robert Brenner (“A caminho do abismo: a crise na economia dos EUA”, artigo publicado em junho de 2002) no que tange à deflagração de uma crise sem precedentes nas profundas estruturas do sistema capitalista, suficiente para alterar substancialmente a dinâmica das relações de poder no panorama da ordem geopolítica mundial e abalar seriamente as condições de vida da comunidade planetária.
Antes de mais nada, é preciso sublinhar que ambos os autores desenvolvem sua argumentação a partir de uma discussão detalhada sobre os mecanismos de desregulamentação financeira que se fizeram mostrar de maneira notável ao longo das últimas décadas, constituindo-se num novo paradigma da acumulação, aonde os processos de financeirização, sobrevalorização de ativos, securitização de dívidas, enfim, uma gama de arranjos institucionais circunscritos à acumulação de capital fictício, acabaram por suplantar os meios comuns de crescimento via incrementos produtivos na chamada economia real.
Mas a crise deflagrada em 2007, fruto do estouro da chamada bolha imobiliária norte-americana (e também britânica, em menor proporção) é resultado, segundo Brenner e Harvey, de um processo historicamente constituído de uma sucessão de fatos que se correlacionam no sentido do estabelecimento de posições hegemônicas por parte tanto de nações, quanto de eminentes figuras do alto escalão do mundo corporativo empresarial global.
Tais considerações remontam aos anos dourados do capitalismo (1945 até fins da década de 60), capitaneados pelas políticas do chamado estado de bem estar social keynesiano, passando pela ruptura da estabilidade do período com a crise deflagrada em 1973 com a arrancada inflacionária dos preços da principal matriz energética mundial (não obstante o fato de que alguns anos antes do embargo do petróleo já haviam indícios de uma possível estagnação da prosperidade capitalista).
É justamente nesse momento que começam a tomar contornos mais nítidos o desenho de forças mundial que irá criar as condições necessárias a fomentar um gradual processo de crise.
O que se tem na década de 70, a partir da crise do petróleo, é um excesso de capacidade produtiva em desuso, pelo fato de que as grandes potencias, dada a intensa concorrência internacional (em função da entrada de produtores com baixo custo do Japão e Europa Ocidental) assumiram a posição de financiar e refinanciar as mesmas linhas de produção já em movimento, em vez de canalizar os recursos para linhas alternativas, o que acabou por causar insuficiência de demanda efetiva, e consequentemente uma alarmante tendência à queda da taxa de lucro.
Para solucionar o problema, nações como os Estados Unidos e a Inglaterra, adotaram políticas neoliberais, sob a tutela de chefes de Estado irredutíveis em suas convicções conservadoras, como Ronald Reagan e Margaret Tatcher, para frear a queda da taxa de lucro. Na década de 80, isso se materializou em medidas de austeridade e, principalmente de elevação do desemprego, com a desculpa de combate a inflação, para tão somente pressionar a oferta de trabalhadores pra cima, reduzindo automaticamente os salários.
Outra medida de impacto foram alguns acordos ditos bilaterais no campo econômico, mas que na prática minavam o poder comercial de algumas nações em proveito de outras, como o Plaza Accord de 1985, reduzindo substanciamente o valor do dólar norte-americano face ao yen japonês e ao marco alemão, deteriorando enormemente os termos das trocas comerciais desses países em favor da América, ainda mais pelo fato de que aliado a isso estava uma política de constante arrocho salarial, o que beneficiava ainda mais o setor manufatureiro dos Estados Unidos.
Todavia tal expediente precisou ser revertido no início da década de 90, uma vez que o dramático processo de estagnação e recessão das economias japonesa e alemã, acabaram por representar uma séria ameaça à estabilidade da economia mundial, e a percepção norte-americana desse fato, ainda mais porque o Japão era seu principal credor, fez com que o Governo dos EUA acordasse com as duas nações a subida do dólar.
Esse fato, para Brenner:
“(...) Constituiu um ponto de viragem na evolução da economia mundial. Inverteu as tendências econômicas da década precedente e , de forma decisiva, preparou o caminho para os principais desenvolvimentos do quinquênio seguinte: declínio da rentabilidade americana, subida histórica no preço dos títulos, boom da economia provocado pela atividade bolsista – e o crash e a recessão que se seguiram.” (BRENNER, 2002, p. 05)
Ocorreu que com a valorização do dólar via inundação fiduciária do mercado norte-americano pelos títulos asiáticos, os investidores do mercado financeiro viram aí uma excelente oportunidade de ação, haja visto que para assegurar a estabilidade na esteira da crise financeira mexicana, a Reserva Federal baixara os juros de curto prazo.
Vale aqui ressaltar que esse processo de valorização do dólar veio pôr termo à guinada de recuperação do setor manufatureiro norte-americano, acarretando consequente declínio de sua rentabilidade, reduzindo desta forma o potencial de absorção das exportações mundiais pelos Estados Unidos, tidos como “mercado de último recurso”.
A partir da elevação das expectativas do setor financeiro norte-americano, via elevação do crédito em grandes proporções, ocorrerá ao longo da década de 90 uma sucessão de fatos emblemáticos da nova tendência a ser assimilada pelo capitalismo, a saber, a de contínua financeirização. Esta nova tendência tinha o importante apoio das autoridades monetárias, como o presidente do Fed à época, Alan Greespan, que incentivava o constante endividamento das empresas norte-americanas via emissão de títulos que se valorizavam rapidamente, por considerar que tal medida era de importância primordial no processo de recuperação do crescimento. E neste aspecto, é de notável importância destacar o que houve com a alavancagem inicial e vertiginosa queda posterior das chamadas firmas ponto.com. Nesse contexto, tais firmas eram vistas como potenciais geradoras de enormes fortunas (e de fato o foram, embora baseadas em capital fictício!) pelo contínuo aumento do desenvolvimento da chamada tecnologia da informação e sua consequente demanda.
Ocorre que tais firmas eram nada mais nada menos que retratos sofisticados do que de fato ocorria por trás da aura exuberante de liquidez que se desenhava na economia norte-americana: empresas com rentabilidade real quase nula, mascaradas por uma sobrevalorização artificial de seus papéis, baseadas na confiança irracional por parte dos agentes envolvidos em sua operacionalidade.
Por intermédio de mecanismos fraudulentos de contabilidade, tais firmas proporcionavam remunerações absurdamente elevadas a seus correspondentes operadores no mercado financeiro, bem como aos bancos e intermediários que auxiliavam neste processo ilusório de alavancagem.

“Crises associadas a problemas nos mercados imobiliários tendem a ser mais duradouras do que as crises curtas e agudas que, às vezes, abalamos mercados de ações e os bancos diretamente. 

Quando, no início da década de 2000 a confiança no valor desses papéis enfim se deteriorou, a bolha estourou, gerando enormes perdas no conjunto das firmas que se relacionavam de forma interdependente, circunscritas no entorno das ponto.com.
É preciso ter em mente esse pano de fundo histórico para compreender a crise de dívida recente que assola os mercados norte-americanos e europeus, pois com o final do estouro da bolha das firmas ponto.com, paulatinamente foi se materializando os mecanismos de geração de uma nova bolha, a saber, a do setor imobiliário, e este processo acabou por assumir contornos ainda mais dramáticos que o anterior.
Nesse aspecto, David Harvey escalerece que:
“Crises associadas a problemas nos mercados imobiliários tendem a ser mais duradouras do que as crises curtas e agudas que, às vezes, abalamos mercados de ações e os bancos diretamente. Isso porque, como veremos, os investimentos no espaço construído são em geral baseados em créditos de alto risco e de retorno demorado: quando o excesso de investimento é enfim revelado (como aconteceu recentemente em Dubai), o caos financeiro que leva muitos anos a ser produzido leva muitos anos para se desfazer.” (HARVEY, p. 14)
Harvey também faz um interessante paralelo histórico entre a recente crise deflagrada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana com outros momentos correlatos como:
1.        Crise originada no setor imobiliário norte-americano na primavera de 1973, que acabou por decretar a falência técnica de Nova York.
2.        Boom japonês da década de 80 que acabou num colapso do mercado de ações e preço da terra.
3.        Crise do sistema bancário sueco, o qual acabou tendo de ser nacionalizado em 1992, também provocada por excesso nos mercados imobiliários nórdicos.
4.        Colapso no Leste e Sudeste asiático de 1997 a 1998 em função de um desenvolvimento urbano excessivo, ocasionado em função de um influxo de capital especulativo estrangeiro.
A questão da crise atual é que ela é de maior alcance do que todas essas outras. Deflagrada em 2007, ela se configura como um assombroso processo de expansão das dívidas das famílias, sendo tais dívidas materializadas em títulos hipotecários que eram repassados aos bancos em troca de empréstimos, tendo como lastro o valor do próprio imóvel. Obviamente que esse processo se alastrava em cadeia, com os bancos e demais instituições securitizadoras em posse de papéis tóxicos dando continuidade num irrefreável movimento de arrefecimento da oferta de crédito e consequente recessão. Na verdade não queremos aqui fazer um detalhamento minucioso da dinâmica da crise, e sim salientar, com o auxílio da obra dos dois pensadores já citados, que ela constitui um ponto crítico na configuração do sistema capitalista de produção, na medida em que coloca sub judice os parâmetros definidores da lógica neoliberal, ideologia de sustentação de tal sistema implantada a contragosto mundial desde meados da década de 70.

“Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido destruídos"

Fato é que, a sociedade se vê obrigada a socializar as perdas dos grandes bancos e das grandes corporações diretamente responsáveis pelo frenesi especulativo que ocasionou o crescimento e posterior estouro da bolha imobiliária. Milhões de pessoas se veem despejadas de suas casas, endividadas, desempregadas. Países com grande dependência do comércio mundial veem suas possibilidades de ganho drasticamente reduzidas em função da flagrante redução da liquidez internacional. Firmas do setor produtivo têm de conviver com uma asfixiante redução dos canais de crédito, vitais a seus projetos de investimento e expansão. E ainda assim, os Governos se colocam a serviço daquelas megacorporações, oferecendo pacotes de salvação a firmas grandes demais para falir.
Os números da tragédia chegam a cifras realmente assombrosas. Harvey pontua por exemplo, que:
“Na primavera de 2009, o Fundo Monetário Internacional estimava que mais de 50 trilhões de dólares em valores de ativos (quase o mesmo valor da produção total de um ano de bens e serviços no mundo) haviam sido destruídos. A Federal Reserve estimou em 11 trilhões de dólares a perda de valores de ativos das famílias dos EUA apenas em 2008. Naquele período, o Banco Mundial previa o primeiro ano de crescimento negativo da economia mundial desde 1945.” (HARVEY, p. 13)
Obviamente que uma crise dessa magnitude repercute no mundo todo, dado o caráter extremamente globalizado da presente conjuntura internacional.
Até mesmo países como a China, tida como o grande motor do crescimento econômico mundial da primeira metade da década inicial dos anos 2000, sentiu o efeito da baixa procura mundial pelos seus produtos e experimentou certa tensão social disso decorrente. Se falarmos dos países na extrema periferia do mundo, ou ainda daqueles significativamente dependentes dos canais de endividamento relacionados à crise (tais como Grécia, Espanha e Irlanda) o quadro é ainda mais perturbador.
Portanto o que está em jogo é a legitimidade de estruturas de poder estabelecidas ao longo das últimas décadas, que acabaram por apresentar falhas fundamentais em seus mecanismos de auto reforçamento, e que por isso levaram as consequências de atitudes gananciosas a serem partilhadas por milhões de pessoas na maioria das vezes totalmente alheias à magnitude da importância histórica dos acontecimentos.
Mas para aquele estrato esclarecido da sociedade, afigura-se de vital importância o assomar de forças no sentido de mobilização em prol de apresentação de novas alternativas políticas de condução dos povos aos novos rumos a serem tomados, rumos que possibilitem a contemplação da dimensão humana e ambiental em primeiro lugar.

1-Bolsista de Iniciação Científica e discente do Curso de Graduação em Economia da Universidade Federal do Pará.

Um comentário:

  1. Excelente texto. Alguns comentários para debate: i) O desenrolar da atual crise, me parece, interpõe, de um lado, expansão da produtividade do trabalho e expansão física (geográfica) do capitalismo. Assim, considerando o atual ciclo pode-se afirmar que as condições de expansão da produtividade, possibilitadas pelas alterações tecnológicas nos campos da telemática e logística, aumentam a composição orgânica (relação entre valor-capital constante e valor-capital variável, algebricamente C/V) em alguns pontos do planeta, porém com elevação da taxa de mais-valia nesses mesmos pontos. Porém, a expansão física (geográfica) do capital, garantiu elevação na massa absoluta de força de trabalho explorada, bem como na massa global de capital. Consequência, dos aspectos enunciados: ii) a questão a ser vista é se essa elevada taxa de “absorção de força de trabalho” garante um novo e expandido ciclo de acumulação e a superação das crises financeiras localizadas.
    Considero que os autores usados no texto colaboram em parte para tentar elucidar essas questões, daí a necessidade de continuar "chafurdando" em Marx.

    ResponderExcluir